Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como um vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é...
Mulher do fim do mundo, Elza Soares.
Introdução
Quero falar do sentido de deslocamento ou não pertencimento, que, para Said³ (2003, 2005, 2011) trata-se do fato de ele considerar esses fenômenos como postos de observações e ressaltar que o caráter produtivo da experiência se dá por constantes deslocamentos.
Há o fato de jamais se sentir em casa, de se ver “fora de lugar em praticamente todos os sentidos” (SAID, 2003, p.2) – e aqui também me incluo – nos espaços que os negros ocupam, sejam eles escolas, trabalhos, academias ou shoppings. Fazer esta discussão pode parecer mais do mesmo, mas é muito diferente quando vivemos como tal: ser o negro; o motivo dos olhares; das conversinhas; das piadinhas.
Pode parecer que estou querendo fazer o que muitos fazem e apenas ser mais um negro extremista, mas gostaria de convidá-los à reflexão sobre como nos sentimos deslocados, por vezes ignorados ou, quando não, somos alvos de piadinhas pejorativas que diminuem nossa alto estima, além de nos colocar em um lugar de inferioridade intelectual e moral. São expressões que por hora não cabe citar, mas que me fazem pensar: tem como não se sentir deslocado ouvindo isso por anos? Como pertencer a algum lugar se não pertencemos nem a nós mesmos (algumas vezes)?
Johnson (1999) analisa, nos estudos do deslocamento e da memória, em que considera-se em foco toda produção de sentido, tendo como ponto de partida é a atenção sobre as estruturas sociais (de poder) e o contexto histórico enquanto fatores essenciais para a compreensão da ação dos meios massivos, assim como o deslocamento do sentido de cultura da sua tradição elitista para as práticas cotidianas (no qual também identifico as minhas), que também se inserem na área dos Estudos Culturais, que seria definida como uma área interdisciplinar, crítica e histórica de investigação dos aspectos do dia a dia das pessoas, esse contexto da convivência dos negros com essas piadas. Sendo o deslocamento um sentimento, que segundo a esfera de pertencimento (HALL, 1997), se dá através do uso que fazemos das coisas, do que dizemos, pensamos e sentimos – como representamos e damos significado, falar do deslocamento que sentimos não é apenas apontar que os negros são marginalizados pela sociedade, mas tentar entender como eles sentem este não pertencimento.
Esses deslocamentos e não pertencimentos acontecem em diversos ambientes, como, por exemplo, concursos, academia, trabalho etc. Muitas vezes, até mesmo em lugares de lazer que deveriam ser de descontração, vivem o sentimento de falta de espaço. Se, para citar outra situação, esse negro for um/a educador/a, terá que mostrar sempre que tem garra, fibra, coragem e reclamar pelos seus espaços. Os homens e mulheres negros e negras sempre parecem precisar de um esforço maior para parecerem capazes, ou se igualarem à força de trabalho dos brancos, considerada, geralmente, superior, melhor.
Isso acontece também, segundo SAID (2003), quando poetas e escritores são exilados, o que ajuda a negar sua dignidade e identidade. Será que o processo histórico de escravidão no Brasil, que exilou homens e mulheres negras que, em sua terra natal, eram reis, sacerdotes, chefes tribais, artistas, e foram trazidos para cá como objetos, pessoas sem identidade, não contribuiu para essa condição de negar historicamente a dignidade do negro?
2. Os Negros no Brasil: Do Regime Escravista à Contemporaneidade
Os negros foram trazidos da África para o Brasil pelos portugueses como escravos para trabalharem, primeiramente com a cana-de-açúcar, no plantio, colheita e trabalhos nos engenhos (século XVI e XVII), a seguir com garimpo do ouro (século XVIII) e depois com a colheita e plantação de café (século XIX). Não houve instituição mais persistente, conservadora e duradoura como a escravidão no Brasil. Nosso país foi o último a extingui-la, após quatro séculos consecutivos, nos quais os negros passaram por inúmeros sofrimentos e geraram muitas riquezas para seus senhores. Durante este período houve um verdadeiro extermínio da raça negra, pois muitos foram os negros que perderam suas vidas durante a escravidão.
Muitos morriam ainda na África durante o período de espera para serem colocados nos navios que os trariam para o Brasil. Outros, durante a viagem, devido às péssimas condições em que eram trazidos, tais como a superlotação dos navios, altas temperaturas, condições precárias de higiene, maus tratos e demais fatores que, somados, caracterizam uma condição totalmente desumana de transporte.
Alguns deles, ao perceberem que estavam sendo retirados de seu país, sendo separados de suas famílias para serem levados para um lugar distante como escravos, ou sendo obrigados a deixar para trás sua história, seus costumes, etc, suicidavam-se, jogando-se ao mar, ou ainda se enforcavam. Por causa disso, estes navios passaram a ser chamados de tumbeiros, porque a grande maioria deles morria nesses lugares que eram como uma tumba flutuante.
Além disso, mesmo após a abolição da escravatura, não houve nenhuma melhoria na vida dos negros, pois eles não tinham para onde ir. Não havia emprego, muitos deles eram velhos, tinham o corpo mutilado pelos castigos sofridos, ou, em função da pesada jornada e pelas péssimas condições de segurança de trabalho a que eram submetidos, principalmente quando eram obrigados a trabalhar com máquinas, sem nenhum tipo de proteção ou treinamento prévio, muitos deles acabavam se suicidando. Isso quando não acontecia de, em tais trabalhos, muitos escravos terem dedos, mãos e até braços mutilados, o que dificultava seu acesso ao trabalho.
Para Oliveira; Oda (2008), em certos casos, o suicídio seria relacionado a crença que teriam os negros de retorno espiritual à África. Sendo assim, suicídios e homicídios eram considerados como fugas e reações decorrentes da inconformidade com o estado de escravidão e da impotência em modificá-lo.
3. Negros e o suicídio
O sentido de deslocamento ou não pertencimento é tão real e cruel que alguns negros, ainda hoje, se suicidam, assim como faziam os negros escravizados. Naquela época, esta era uma forma de depressão em que eles alimentavam uma tristeza doentia, que os levava às vezes até à morte. Os (as) negros (as) escravizados (as) pareciam procurar o suicídio para fugir do sistema de escravidão que não suportavam mais, dessa forma, o suicídio não é sintoma de algo interno, intimo, mas, de algo coletivo, socialmente enjambrado, construído. Acontece quando o indivíduo mantém relações desequilibradas com a sociedade na qual está inserido. Faltando os aspectos vistos anteriormente que poderiam manter o equilíbrio social, o indivíduo poderá apelar para o suicídio. (AGUIAR, 2012, p.94)
Enquanto, para Said (2003), é na fronteira entre “nós” e os “outros” que se dá o perigoso território do não pertencer, para o qual, em tempos primitivos, as pessoas eram banidas e, na contemporaneidade, imensos agregados de humanidade permanecem, como refugiados e pessoas deslocadas. Podemos então refletir que uma das possíveis causas para o alto número de suicídio de pessoas negras poderia ser a não conformidade com a realidade que os cerca, com os preconceitos velados, ou não, que são expostos diariamente, além do sentido de não pertencimento e da falta de ligações com outros sujeitos e com os espaços, que por vezes, também, são hostis.
Podemos ter uma noção da crueldade se analisarmos quando alguns dados sobre o suicídio de jovens negros, uma vez que o suicídio de brancos cresce 8,6% entre 2002 e 2008, enquanto o de negros aumenta 51,3%. Os jovens brancos apresentam a mesma taxa de suicídios que os brancos na população total (4,8 em 100 mil), mas os suicídios entre os jovens negros (4 em 100 mil) são maiores que na população total de negros (3,3 em 100 mil). Assim, a taxa entre os jovens brancos é 17,3% maior do que entre os jovens negros. Entre os jovens, o suicídio de brancos até cai levemente, -2,8%, enquanto entre negros o suicídio cresce 29,4%. No caso dos suicídios, não foi possível estimar as taxas, dado que as estimativas de população por raça/cor, inferidas a partir das matrizes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, originaram graves problemas de imputação, motivo pelo qual se decidiu trabalhar só com os números absolutos de suicídios do SIM. (...) É possível observar que Unidades Federadas, como Paraíba, Rondônia e Santa Catarina, tiveram fortes incrementos nos suicídios negros, quando o normal nos suicídios brancos foram quedas estaduais. (WAISELFISZ, 2011, p.145)
Pensar estes números, talvez seja uma forma de refletirmos em como estamos direcionando esses jovens a se tornarem adultos deslocados e sem uma identidade positiva, pois sempre se reforçam os estereótipos. Até mesmo quando o assunto é sexualidade, nós, homens negros, somos tidos como “bons de cama” e isso tudo vira um reforço para marcas que agridem a individualidade, pois nos tornamos apenas corpos, sem alma, história ou desejos, um homem negro não é um homem, antes ele é um negro e como tal, não tem sexualidade, tem sexo, um sexo que desde muito cedo foi descrito no Brasil com atributo que o emasculava ao mesmo tempo que o assemelhava a um animal em contraste com o homem branco. Este imaginário é perceptível no modo como a masculinidade é representada [socialmente] (...) O temor psíquico do negro macrofálico é retratado através de estereótipos que foram forjados durante longos anos até tornarem-se verdade (...) (FANON (1983) apud SOUZA (2001), p. 100)
Podemos aqui dizer que nós, negros, somos vistos, na maioria das vezes, como objetos de desejo, o que também nos leva ao não pertencimento quando o outro nos olha como se não fôssemos nada, além de um falo, de uma transa, de uma trepada fácil. Para além disso, não se vê um ser humano, uma pessoa, e isso pode fazer com que muitos de nós sejamos menosprezados, nos anulemos e não vejamos nada além disso. Ou simplesmente vemos uma saída: a morte.
4. Conclusão
Podemos aqui refletir como a sociedade, de uma forma geral, pode contribuir para essa sensação de não pertencer e desse sentimento de deslocamento, que, por vezes, nos faz sentir como se não existíssemos, como se fossemos um pedaço de carne no açougue, ou apenas um peso de papel, não sendo levados a sério.
Não quero aqui fazer apologias e ser demagogo ou ser politicamente correto, mas não há como tudo isso não passar por mim, pela minha história e pela formação de quem eu sou, pois muitas vezes também passei por isso: ser motivos de chacota, olhares maliciosos ou preconceituosos.
Também fui e sou vítima desse preconceito. No meu último ano da faculdade, tive uma professora (branca, loira e dos olhos azuis) que me tratava como se eu fosse a escória do universo.
Em suas aulas, minha participação era silenciada sempre que eu fazia ou dizia algo, mas meu amigo “do lado” que era branco e professor em uma escola de idiomas, ela o ouvia atenciosamente e ela não parecia a mesma pessoa. Isso ocorreu por várias vezes e na época eu não me dava conta de como a minha cor a incomodava, cheguei a pensar que a culpa era minha.
Quando estava na Pós-graduação, resolvi fazer um curso de formação para professor que a própria universidade ofertava. Quando cheguei na penúltima fase, ou seja, na nona, eram dez, ela foi a avaliadora. Lembro-me como se fosse hoje: ela entrou na sala da formação e quando me olhou disse: “O que você está fazendo aqui, achei que não te veria mais?” Não foi só a fala dela, mas o tom na voz, aquele que sutilmente aniquila o outro e que por sua vez o menospreza, fazendo com que se sinta incapaz.
Quando saiu o resultado para a última fase, eu tinha sido cortado do programa. Me senti péssimo, como se não fosse capaz de nada. Além de não entender o que aconteceu, só hoje, revisitando minhas memórias é que vejo o quanto fui vítima de um racismo velado, perverso e traiçoeiro, pois não dá ao outro a possibilidade de defesa.
A história que relatei é apenas mais um reflexo de como o racismo é naturalizado e estrutural no País. Apesar dos avanços nos direitos civis, nunca se conseguiu superar a escravidão, e vestígios do preconceito contra os negros se revelam ora nos detalhes, ora de forma escancarada, como nesta situação, não importando em quais espaços ele esteja.
Por isso precisamos ser Marielle (1979 - 2018); George Floyd (1973 - 2020) que morreram por essa ignorância que às vezes é intencional, para silenciar as lutas negras que nascem do sofrimento e da angústia, nem podemos ter tantos avanços tecnológicos, sociais e de saúde, mas continuar sendo mortos pela ignorância de um sistema que ainda nos veem como mão de obra descartável e sem valor ou amor, então, continuaremos levantado e lutando como fizeram os que vieram antes de nós:Maria Firmina dos Reis (1825 - 1917); Dandara de Palmares ( ? - 1694); Tia Ciata (1854 - 1924); Sueli Carneiro (1950); Malcolm X (1925 - 1965); Nelson Mandela (1918-2013); Luiz Gama (1830 - 1882); Zumbi de Palmares (1655 - 1695); Abdias Nascimento (1914 - 2011); Milton Santos (1926 - 2001); Martin Luther King Jr (1929- 1968).
Não quero fazer desse final um obituário, mas sim um Memorial de luta e resistência, pois é isso que somos, resistentes e sobreviventes a dor, a ignorância e várias formas de sofrimentos impostos diariamente, então convido vocês leitores a se apropriarem de histórias negras potentes para que tenhamos força para resistir e mais do que isso…EXISTIR!
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Gilberto Orácio de. O suicídio entre jovens negros na perspectiva Durkheimiana. IDENTIDADE!, Porto Alegre, Vol. 17, No 1, p. 91-108, 2012.
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
HALL, Stuart. “The work of representation”. In: HALL, Stuart (org.) Representation. Cultural representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University, 1997.
JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
LOBO, Lilia Ferreira. Os Infames da história: Pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.
OLIVEIRA, Saulo Veiga; ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. O suicídio de escravos em São Paulo nas últimas duas décadas da escravidão. História, Ciências, Saúde –Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.2, p.371-388, abr.-jun. 2008.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
________. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. Tradução: Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
________. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2011: os jovens do Brasil. São Paulo/ Brasília: Instituto Sangari/MEC, 2011.
COUTINHO, Alice; ROMULO, Fróes. Mulher do fim do mundo. In: SOARES, Elza. A MULHER DO FIM DO MUNDO. São Paulo: Circus, 2016. CD. Faixa 2.
Artigo: Wanderley Francisco
Publicado: Danyela Silva
Revisão: Edgard Varis
Imagem: Internet
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